domingo, 2 de maio de 2010

Aprendizado


Luiz Vilela


A arte é um longo aprendizado, e a vida dos grandes escritores está cheia de lutas e de sacrifícios.
Padre Ângelo olhou um instante pelo vitrô que dava para a rua; depois voltou-se de novo para a classe e olhou para ele:
- Meu filho, Deus te deu uma vocação; cultive-a com carinho. Um grande futuro te espera.
O resto da aula ele mal vira – nada mais tinha importância, nada mais existia a não ser aquele mundo dentro dele, aquela coisa maior do que tudo lá fora.
Agora ia pela rua, a caminho de casa. Quando chegou no Jardim, teve uma vontade doida de sair correndo, gritando e saltando sob as árvores.
Tirou a redação da pasta e olhou mais uma vez: No canto da página, em cima, um dez grande, escrito com tinta vermelha seguido de um ponto de exclamação. E seus pais, quando ele mostrasse e contasse?
Não podia mais, e já ia correr, quando foi olhar para trás e viu Jordão e Grilo: Jordão fez-lhe um sinal para esperar. Ele ficou parado, olhando para os dois, que vinham contra o fundo da tarde que morria: Jordão gordo e gingando, e Grilo comprido e curvo. Alguma coisa ia encolhendo dentro dele.
- Como é, escritor?...-Jordão abraçou-o.
Ele procurou sorrir. Grilo vinha meio atrás, sem falar nada.
-Fiquei contente pra burro: tenho um colega gênio...Cadê a redação?
-Está aqui na pasta.
-Deixa eu ver.
-Amanhã te mostro; estou com pressa agora, mamãe pediu para eu chegar mais cedo hoje – ele mentiu.
- Num instantinho eu leio.
- Amanhã eu levo no colégio.
Vinha trazendo a pasta dependurada pela mão; passou-a para debaixo do braço e ficou segurando com força. Sentia seu coração bater contra ela.
Jordão tirava uma pedrinha do sapato, apoiado em Grilo.
Recomeçaram a andar.
- Você não foi na festa ontem – disse Jordão. – Foi bacana, dançamos e bebemos pra burro. Por que você não foi?...
-Não deu.
-Você estava escrevendo?
-Não.
-É verdade que sua mãe te ajuda a escrever?
-Quem disse isso?
-Ouvi dizer lá no colégio.
-Quem disse?
-Ouvi dizer. Você também não ouviu, Grilo?
-Ouvi.
-Quero saber quem disse isso.
-Quê que tem? Acho que não tem nada de mais a mãe da gente ajudar.
-Minha mãe não me ajuda – ele disse.
-Pois minha mãe me ajuda. De vez em quando eu peço a ela. Não é porque eu tenho preguiça; é que mulher é que tem jeito pra essas coisas.
Ele ficou calado.
-Eu não tenho jeito nenhum – continuou Jordão. – Meu negócio é ser macho – e virou-se e deu uns socos em Grilo, provocando-o.
-Você não dá nem pro começo – disse Grilo.
- Uma esquerda só, e eu te amasso, Grilo.
-Você não dá nem pra começar – disse Grilo.
Jordão atirou a esquerda, não com tanta força que machucasse; Grilo desviou-se e deu-lhe uma gravata.
-Agora – disse Grilo, segurando-o com o braço ossudo, os olhos brilhantes.
-Me larga – Jordão tossiu sufocado, - você tá me enforcando...
Grilo ainda deu uma apertada, provando sua força; depois soltou-o.
-Você quase me mata – choramingou Jordão, passando a mão pelo pescoço, que estava vermelho.
Grilo ria contente.
-Filho duma égua – Jordão ameaçou avançar de novo, e Grilo deu uma corridinha, rindo. – Vem, vem agora, se você é homem...
-Eu não, bem, você é muito gorda...
Jordão riu.
-Cavalo...
Ele esperava, olhando para os dói.
Jordão foi andando come ele. Olhou para trás:
-Olha que coisa mais esquisita, olha se isso é gente; eu, se tivesse nascido assim, suicidava...
-Quê que foi aí, gorda? – Grilo se aproximou. – Tá querendo me dar?...
-Aqui quê eu tou querendo te dar – Jordão balançou para ele.
-Deixa eu ver se tem alguma coisa aí...
Jordão empurrou-o com o corpo.
-Hum, bruta...
Jordão riu.
Os três iam andando. Tinham atravessado metade do Jardim.
-Acho que é uma sacanagem... - disse Jordão.
-Sacanagem o quê? – ele perguntou, e seu coração começou a bater depressa de novo.
-Você não deixar a gente ler agora a redação...
-Já te falei que amanhã eu levo no colégio; amanhã você lê.
-Amanhã está longe, queria ler é agora...
Ele apertava a pasta contra o corpo
Na calçada em frente, por entre as árvores do Jardim, viu seu tio passando: ia calmamente, as mãos atrás, olhando para a tarde. Se o tio tivesse virado um pouco a cabeça, também o teria visto; mas foi passando calmamente, olhando para a tarde, e então chegou na esquina, olhou se vinha carro, atravessou a rua e desapareceu.
-Só dar uma lida rápida, Eduardo...
-Não! – explodiu. – Que merda!
Os dois pararam assustados.
-Você fica enchendo o saco! Já te falei que agora não dá, que amanhã eu levo no colégio! Que diabo!
-Tá bem – disse Jordão; - não é caso de briga não...
Recomeçaram a andar.
-Falei que não dá, e você fica insistindo. Se desse, eu mostrava.
-Tá certo- disse Jordão – Não tem problema não; você não quer, não quer; estava só pedindo...
Grilo vinha atrás e parecia mais curvado ainda.
-Só por uma questão de amizade; você tinha mostrado para os outros, e então pensei que...
-Está bem – ele parou de repente:- eu vou mostrar; mas vê se lê rápido, em dois minutos, tá?
-Em dois minutos – concordou Jordão.
Ele apoiou a pasta no peito, abriu, e tirou a redação. Se tivesse olhado um minuto antes, teria visto Jordão fazer um sinal para Grilo; agora, um minuto depois, a redação com eles, o que viu foi os olhos brilhantes de Grilo e Jordão sorrindo – e então compreendeu tudo.
-Me dá minha redação – avançou, mas Jordão puxou a mão para trás.
-Calma ... Eu não li ainda...
-Eu também não li – disse Grilo, no mesmo tom.
Seu rosto queimava, e ele só via aqueles dois na frente rindo.
- Vocês são uns sacanas.
-Como é que é?...-Jordão pôs a mão no ouvido.
_Ele disse que nós somos uns sacanas, Jordão.
-Você disse isso, Eduardo?
Seus olhos embaçavam de desespero e ódio.
-Tadinho – Jordão riu – olha como ele está...Você acreditou mesmo que eu queria ler sua redação, benzinho?...
-Você é um sacana.
-Olha lá, hem? – Jordão ameaçou. – Pára de me chamar disso.
-Sacana.
-Eu rasgo essa bosta aqui, Eduardo.
-Sacana.
-Eu tou avisando, Eduardo.
-Sacana.
-Pára, Eduardo!
-Sacana.
Jordão rasgou a folha e tornou a rasgar e a rasgar.
-Fedaputa! – e Eduardo deu um murro com tanta força, que Jordão foi cair sentado no chão.
Na mesma hora foi agarrado por trás. Tentou escapar, mas Grilo o segurava com força.
E então viu Jordão se aproximando, com os punhos fechados:
-Você vai aprender agora.

Este texto foi extraído do livro Para gostar de ler 35; Gente em conflito, páginas 27-32

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