domingo, 12 de dezembro de 2010

O velho da primeira avenida


Aconteceu na esquina da 1st Avenue, no centro de Miami, Flórida (EUA).
Cheguei no horário agendado para a reunião com o representante de uma
companhia exportadora de perfumes, mas ele se atrasou e eu decidi esperá-lo na
porta de entrada da empresa. Encostado a uma pilastra, eu observava o vaivém
dos pedestres.
- Es la única esperanza – ouvi de um homem perto dos 90 anos que trazia um
folheto na mão. Era mais um desses pregadores religiosos de conversa maçante e
interesseira. Desviei o olhar e fui tratando de desestimular o diálogo com um
leviano “não entendo espanhol, senhor”, mesmo sabendo que a reunião pela qual
eu aguardava se desenrolaria em portunhol. O velho não se abalou diante da
minha impaciência e continuou pregando:
- Habrá uma gran desgracia si los ricos y poderosos no despertaren para el
mundo. Una terrible escasez de alimentos tornará el convivio entre los hombres
insoportable.
A força das suas palavras me encorajou a fitá-lo.Senti um sobressalto ao
constatar quanto sua fisionomia me era familiar. Os olhos cinza-amarelos tinham
tênues traços orientais e as sobrancelhas grossas me surpreendiam pelas penugens
negras realçadas pelos cabelos brancos. Apesar da espantosa semelhança, o nariz
reto e ligeiramente arrebitado era diferente. Sua fisionomia me agradava e, por
isso, passei a conversar com ele. Meio sem assunto, perguntei-lhe se conhecia a
Igreja Universal do Reino de Deus, fundada no Brasil. Respondeu-me que não,
não se interessava por novas seitas que surgiam às pencas, pois a maioria eram
igrejas do diabo. E sem me olhar nem dizer adeus, continuou seu caminho.
A semelhança com meu pai se evidenciou ainda mais quando o vi de costas, o
corpo franzino curvado pela idade. Fiquei estático e eletrizado. Um “buenos dias”
despertou-me do torpor. Era o representante comercial que eu aguardava me
convidando para entrar. Não me concentrei na reunião, pois aquela imagem
tomou conta da minha mente.
Saí do encontro desconcertado. Era uma fixação sem sentido – afinal, pessoas
parecidas existem em todo canto do mundo. Resolvi antecipar o almoço. Na
cantina habitual, o sorriso da funcionária não afastou meu desconforto. De
repente, desabei num choro convulsivo, desencadeado pelas lembranças do meu
velho, do meu amigo, do meu pai. Mudei de posição na mesa para que a
garçonete não percebesse o meu estado. Eu não me reconhecia. Onde estava o
homem seco e contido que nunca chorava?
No dia seguinte voltei à mesma esquina, na esperança de reencontrar o velho
homem. Nada. Chorei mais vezes ao longo daquela semana: no hotel, no avião,
ao chegar em casa. Afinal, quem era aquele homem de palavras fortes? Por que
surgira e sumira daquela forma? Não encontrei respostas, mas entendi o valor da
sua ajuda. Sua missão era me abrir. Ele viera para me permitir soltar as lágrimas
que eu vinha contendo desde o derradeiro encontro com meu legítimo e inimitável 
velho. Eu consegui.

Aristóteles Sampaio Carvalho

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