sábado, 30 de outubro de 2010

A Terceira Margem do Rio


A terceira margem do rio     
                                                                       João Guimarães Rosa

Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente — minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.

Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a idéia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.

Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: — "Cê vai, ocê fique, você nunca volte!" Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — "Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?" Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.

Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para. estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho.

Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas — passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra banda — descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viajava s'embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para casa.

No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a idéia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito não se demonstrava.

Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios. Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o 'dever de desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele.

A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele agüentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração da canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. O que consumia de comer, era só um quase; mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável. Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore descendo — de espanto de esbarro. E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos.

Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele, quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia.

Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: — "Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim..."; o que não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido o do casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados.

Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei — na vagação, no rio no ermo — sem dar razão de seu feito. Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada mais. Só as falsas conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos.

Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse — se as coisas fossem outras. E fui tomando idéia.

Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: — "Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!..." E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.

Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.

Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.

Texto extraído do livro "Primeiras Estórias", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1988, pág. 32

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Contra as armas

Contra as armas
A Câmara dos Deputados deve aprovar em breve o projeto de decreto legislativo que define a pergunta a ser feita no referendo nacional sobre armas. Se não houver alterações, os eleitores brasileiros serão convocados em algum domingo de outubro próximo a responder à pergunta:"O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?". Esta Folha defende o "sim".
Fá-lo não por considerar a proscrição total o mais adequado nem por julgar que a medida, se aprovada e convertida em lei, será capaz de conter as ações cada vez mais ousadas de criminosos, mas porque, diante das alternativas, as vantagens da proibição parecem superar em muito os problemas por ela acarretados.
Ao longo do debate, defenderam-se neste espaço a proibição do porte, restrições à venda e o direito de o cidadão manter arma em sua residência. Alertou-se, também, para o risco de um plebiscito criar falsas ilusões sobre a eficácia da medida num país em que as armas em mãos de civis, cidadãos de bem ou marginais, advem, em larga escala, do comércio clandestino, sobre o qual o veto à venda regular não teria efeito, salvo, possivelmente, o de estimulá-lo.
Além de sua dimensão simbólica, a vantagem da proibição, desde que aliada a ações temáticas para reprimir a venda ilegal, está na possibilidade de reduzir significamente um tipo muito específico de homicídio - o motivado por causas fúteis -, bem como os acidentes com armas de fogo. Em ganho, ao que indicam as estatísticas, seria importante. Na Gande São Paulo. por exemplo, 60% dos homicídios são cometidos por pessoas sem histórico criminal e por motivos banais, como brigas de trânsito, discussões em bares e outras situações em que o destempero e os efeitos do álcool se associam à existência de uma arma à mão para produzir uma tragédia.
A esse respeito, a campanha de desarmamento, que recolheu mais de 300 mil artefatos principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, parece já estar produzindo resultados auspiciosos. Estudo divulgado nesta semana indica que internações hospitalares relacionadas a ferimentos por tiros caíram 10,5% em SP e 7% no RJ desde o início da coleta.
O veto às armas pode ser interpretado como uma limitação ao direito de autodefesa, o qual, mais do que uma garantia legal, é um instinto biológico. Está entre as atribuições do Estado, todavia, definir regras para o exercício de certas atividades e fixar os requisitos para a concessão de licenças. Ninguém  tem o seu direito de ir e vir ameaçado pelo fato de não poder dirigir um carro sem possuir habilitação. E não resta dúvida de que a decisão, entre nós, está sendo tomada por caminhos democráticos.
Assim, se o plebiscito determinar que o poder público deve proibir a comercialização e circunscrever o porte de armas a militares, policiais e algumas outras categorias, não se deverá ver aí um atentado aos direitos e garantias fundamentais, mas apenas mais uma das clássicas regulamentações da vida em sociedade.
Tal decisão não vai, como já se disse, impedir que traficantes e outros representates do crime organizado consigam o armamento leve ou pesado de que se utilizam. Para isso seriam necessárias outras medidas, que o poder público tem falhado em adotar. Diante do caminho que o debate seguiu, não resta dúvida, porém, que o melhor a fazer é votar pelo "sim" no plebiscito, na convicção de que a restrição às armas , sem ferir direitos fundamentais, venha a contribuir para preservar vidas e tornar melhor a sociedade.
Folha de São Paulo, 15 maio 2005, p. A2.

Questões

1) Editorial é um gènero textual cuja intenção é apresentar e defender a opinição ou a posição de determinado veículo de comunicação diante de um fato ou de uma ideia. Transcreva do texto a(s) frase(s) com essa intenção.
2) Ao expor os motivos da posição assumida, o editorial afirma:
"[...] diante  das alternativas, as vantagens da proibição parecem superar em muito os problemas por ela acarretados".
Com base nesse trecho, o que pode observar em relação à posição do jornal: ela se fundamenta numa certeza absoluta. Explique utilizando elementos do próprio trecho.
3) No terceiro parágrafo do texto, há uma referência a ideias que já foram defendidas anteriormente.
a) Que ideias são essas.
b) Qual dessas ideias parece revelar uma contradição em relação à posição que o jornal assume nesse editorial. Jusrifique sua resposta.
4) Ainda no terceiro parágrafo, fala-se no "risco de um plebiscito criar falsas ilusões...". Explique quais ilusões", que, segundo o editorial do jornal, o plebiscito pode criar.
5)Para defender a posição a favor da proibição da venda de armas, o editorial usa um argumento.
Responda:
a)Qual é o argumento
b)Para fundamentar esse argumento são usados dados estatísticos. O que esses dados apontam.
c)O que seria evitado com a proibição da venda de armas, segundo o editorial.
d)Que outro(s) dado(s) é (são) apresentado(s) para fundamentar o argumento a favor da proibição.
6)para defender a posição a favor da proibição da venda de armas, o editorial usa também um contra-argumento, ou seja, um argumento que poderia ser levantado contra a sua posição. Responda: qual é o contra-argumento.
7)A convivência em sociedade pressupõe a existência de normas que devem ser seguidas pelas pessoas.
a) Cite um exemplo de norma social aceita por você como necessária.
b)Cite um exemplo de norma social que você julga ser autoritária.
8)Explique como você entende a posição do jornal expressa neste trecho:
"[.s.]e o plebiscito determinar que o poder público deve proibir a comercialização ( de armas e munições)[...]não se deverá ver aí um atentado aos direitos e garantir fundamentais, mas apenas mais uma das clássicas regulamentações da vida em sociedade."
9)Releia o último parágrafo do texto linhas (43-51)
a) Pode-se afirmar que o jornal acredita que a proibição do comércio de armas de fogo e munição solucionará totalemente o problema da violência. Explique.
b)Esse último parágrafo retoma a ideia inicial para concluí-la. Justifique sua resposta.

Boa atividade! Bom feriado!

Profª Iara

sexta-feira, 1 de outubro de 2010